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03/02/2022

Fragmento não letal do antraz tem ação analgésica e atua diretamente nos neurônios sinalizadores da dor

Maria Fernanda Ziegler | Agencia FAPESP - Quando submetidas a ambientes hostis, as bacterias da especie Bacillus anthracis desenvolvem esporos ricos em uma toxina conhecida como antraz - capaz de causar ulceras na pele, problemas gastrointestinais e respiratorios nos individuos expostos, levando a morte em poucas horas. Gracas a esse potencial letal, o antraz foi transformado em arma biologica.

Mas os dias de vilao do antraz podem estar contados. Em estudo recentemente publicado na revista Nature Neuroscience, pesquisadores da Universidade Harvard (Estados Unidos) e da Universidade de Sao Paulo (USP) mostraram que um componente nao letal da toxina tem alto poder analgesico e atua diretamente nos neuronios sinalizadores da dor. Por se ligar a um receptor desses neuronios, esse pedaco do antraz pode ainda ser usado como um carreador capaz de levar outras substancias analgesicas ate as celulas neuronais.

"Nao era esperado que o antraz pudesse ter efeito analgesico diretamente nos neuronios da dor. Isso ocorre porque um dos receptores das celulas neuronais relacionadas a dor tem alta afinidade com essa toxina. A ideia agora e usar esse pedaco nao letal da toxina e associa-lo a outras substancias para obter um efeito especifico nos neuronios. Em tese, ele pode ser usado como um carreador para transportar compostos ativos ate essas celulas neuronais, que costumam ser dificeis de serem alcancadas", explica Thiago Mattar Cunha, integrante do Centro de Pesquisa em Doencas Inflamatorias (CRID) e coautor do estudo.

O CRID e um Centro de Pesquisa, Inovacao e Difusao (CEPID) da FAPESP sediado na Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto (FMRP-USP).

Os experimentos descritos no artigo foram realizados em camundongos, em varios modelos de dor cronica, neuropatica, inflamatoria e de diferentes patologias. "A expectativa e que, com mais estudos, seja possivel no futuro produzir um novo tipo de analgesico, contendo uma parte da toxina antraz que atue de maneira mais especifica nesse tipo de neuronio. Com isso, o medicamento poderia ser usado para diferentes dores patologicas que, infelizmente, nao respondem a outros medicamentos", diz.

A parte que nao mata

A toxina presente nos esporos da B. anthracis e composta por tres proteinas diferentes: a edema factor (fator de edema), a lethal factor (fator letal) e a PA (antigeno protetor, na sigla em ingles). Esta ultima funciona como uma chave que se liga ao receptor das celulas e e capaz de internalizar diferentes toxinas. Como um grande colar de contas, as tres proteinas que formam o antraz tambem podem se ligar umas as outras, em duplas, formando um pedaco do que e o antraz. Como a PA sozinha nao tem efeito biologico, os pesquisadores utilizaram no estudo a combinacao dessa proteina com o fator de edema, que tambem nao mata.

"Alem de descobrir que a PA se ligava aos receptores das celulas neuronais relacionadas a dor, constatamos que, quando a PA e o fator de edema sao associados e injetos na via intratecal [no cerebro] dos camundongos, o composto chega ao ganglio da raiz dorsal, onde estao os neuronios relacionados a dor. E observamos que isso produzia analgesia", conta Cunha.

Tanto a equipe em Harvard quanto a de Ribeirao Preto realizaram varios experimentos para comprovar esses efeitos analgesicos e demonstrar que a PA estava transportando a toxina para dentro dos neuronios. "Ainda nao sabemos exatamente qual e o mecanismo, o mais provavel e que ocorra um bloqueio. Geralmente, o neuronio sensitivo na medula espinhal se conecta [forma uma sinapse] a outro neuronio para que ocorra a transmissao da informacao dolorosa ate o sistema nervoso central. E, pelo que observamos, esse composto impede essa sinapse, evitando assim a dor", explica.

Alem da associacao da PA com o fator de edema, os pesquisadores tambem realizaram experimentos com diferentes compostos. Em um dos testes, a PA foi combinada a toxina botulinica, produzida pela bacteria Clostridium botulinum e usada em um procedimento estetico conhecido como botox. Desse modo, os pesquisadores demonstraram que a PA fazia a "entrega" da toxina botulinica diretamente para as celulas neuronais relacionadas com a dor.

"Isso demonstra a capacidade da PA de transportar uma grande variedade de substancias, drogas e outras toxinas ate os neuronios relacionados a dor, o que no futuro pode abrir um leque grande de novos analgesicos, para diferentes tipos de patologia, que atuem diretamente nos neuronios sinalizadores da dor", avalia o pesquisador.

O artigo Anthrax toxins regulate pain signaling and can deliver molecular cargoes into ANTXR2+ DRG sensory neurons pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41593-021-00973-8.

 

 

Este texto foi originalmente publicado por Agencia FAPESP de acordo com a licenca Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

 

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