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01/07/2025 16h56

Disparidades na expectativa de vida revelam fragilidade do Sistema de Saúde Pública Norte-Americano

Texto por Flavio Martins

O cenário atual da saúde pública nos Estados Unidos atravessa um momento crítico que ameaça décadas de conquistas científicas e sociais. Enquanto um estudo abrangente revela disparidades alarmantes na expectativa de vida entre diferentes estados americanos, a administração Trump-Kennedy implementa cortes que podem reverter um século de avanços em saúde pública. Esta combinação de evidências científicas e decisões políticas sinaliza uma transformação perigosa no panorama sanitário americano.

O retrato das desigualdades

O maior estudo já realizado sobre mortalidade nos Estados Unidos, publicado na JAMA Network Open, analisou 179 milhões de mortes ao longo de mais de um século, revelando disparidades alarmantes. Embora a expectativa de vida tenha melhorado nacionalmente, as diferenças regionais são dramáticas. Nos estados do Oeste e Nordeste houve melhorias substanciais entre 1900 e 2000, mas estados do Sul como Oklahoma, Arkansas e Mississippi praticamente estagnaram - mulheres nascidas em 2000 vivem apenas 2-3 anos a mais que as de 1900. Washington D.C. exemplifica o potencial de transformação: de menor expectativa (48,7 anos para homens em 1900) para uma das maiores (86,5 anos em 2000). O aspecto mais preocupante é que americanos com diploma universitário vivem 8,5 anos a mais que aqueles sem educação superior. 

Os ganhos históricos em expectativa de vida resultaram de investimentos estratégicos hoje sob ameaça. Entre 1900 e 1950, melhorias no saneamento, água potável, antibióticos e programas de vacinação transformaram a realidade sanitária americana. Os números impressionam: apenas a vacinação contra sarampo salvou 93,7 milhões de vidas globalmente entre 1974 e 2024. Nos EUA, vacinações infantis entre 1994 e 2023 preveniram 1,1 milhão de mortes e geraram economias de US$ 3,7 trilhões. Estes investimentos demonstram que políticas de saúde pública adequadas podem superar disparidades históricas, mas requerem compromisso político sustentado e financiamento consistente para manter e expandir conquistas já alcançadas. 

Políticas atuais e suas consequências

Justamente quando a ciência documenta a importância crucial dos investimentos em saúde pública, a administração atual promove o oposto. O Secretário de Saúde Robert F. Kennedy Jr. questionou publicamente a segurança das vacinas e cortou o financiamento americano à Gavi, a aliança global de vacinas. Especialistas descrevem essas medidas como "calamitosas", potencialmente custando "centenas de milhares de vidas infantis por ano". A demissão dos membros do Comitê Consultivo sobre Práticas de Imunização e a nomeação de pessoas que contestam a ciência vacinal estabelecida representam uma ruptura com décadas de consenso científico. Paralelamente, programas de diversidade e inclusão em instituições de saúde enfrentam cortes de financiamento federal.

O valor econômico desses investimentos é inquestionável. Durante a COVID-19, condados com maiores gastos pré-pandêmicos em saúde pública tiveram 13-22% menos casos e 7-18% menos mortes. Para cada US$ 10 per capita investidos em saúde local, 1,2 vidas por 100.000 habitantes foram salvas durante os picos da pandemia. As doenças crônicas, que afetam seis em cada dez adultos americanos, custam US$ 4,5 trilhões anuais ao sistema de saúde. Apenas problemas cardíacos e derrames resultam em mais de US$ 100 bilhões em perda de produtividade anual. Estes números mostram que investir em prevenção não é apenas uma questão moral, mas econômica.

As disparidades reveladas pelo estudo não são acidentais. Estados com políticas de saúde pública mais progressivas, como a Califórnia com suas leis antitabaco implementadas em 1995, experimentaram melhorias consistentes na expectativa de vida. Em contraste, estados como Kentucky, sem esforços significativos de controle do tabagismo, mantiveram taxas mais altas de uso de cigarros e, consequentemente, maior mortalidade.

A convergência entre evidências científicas sobre disparidades na expectativa de vida e políticas que ameaçam os fundamentos da saúde pública americana representa um momento decisivo. O estudo demonstra que alguns estados experimentaram pouca melhoria na expectativa de vida ao longo de um século inteiro, enquanto enfrentamos uma administração que questiona décadas de consenso científico sobre vacinas e saúde pública. A questão fundamental transcende aspectos técnicos: se reconheceremos os riscos estratégicos desses retrocessos antes que se tornem irreversíveis. Como a história demonstra, recuperar liderança em saúde pública, uma vez perdida, é um desafio formidável cujos custos se manifestam em oportunidades perdidas, sistemas de saúde enfraquecidos e vidas que poderiam ter sido salvas.

 


Referências:

Holford, T. R., McKay, L., Tam, J., Jeon, J., & Meza, R. (2025). All-cause mortality and life expectancy by birth cohort across US states. JAMA Network Open, 8(4), e257695. https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2025.7695

Mateus, B. (2025, janeiro). New study shows immense impact of public health on life expectancy: Trump-Kennedy spending cuts threaten a century of gains. World Socialist Web Site. Recuperado de https://www.wsws.org


Sobre o autor: Flavio Pinheiro Martins é Gestor de Difusão Científica do CRID (licenciado), Doutorando pela University College London e pesquisador associado do Laboratório de Patologia Ambiental e Experimental do HCFMUSP

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