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04/06/2025 17h22

SUS como modelo para a saúde britânica

Comentário por Flavio Martins e Wasim AP Syed

Uma interessante colaboração internacional tem ocorrido no campo da saúde pública: o Reino Unido, reconhecido mundialmente por seu NHS (National Health Service), está olhando para o SUS em busca de soluções para seus crescentes problemas de acesso e eficiência. O tema tem ganhado ampla repercussão na mídia internacional, com destaque em veículos como The Telegraph, BBC e Deutsche Welle, evidenciando o interesse global por essa cooperação entre dois dos maiores sistemas de saúde do mundo. O modelo brasileiro dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), parte fundamental da Estratégia Saúde da Família do SUS, tornou-se objeto de estudo e implementação experimental no sistema britânico.

O Modelo Brasileiro que desperta interesse internacional

Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) surgiram no Brasil na década de 1990 como resposta ao primeiro grande surto de cólera em quase um século. O modelo se baseia em profissionais que residem nas próprias comunidades onde trabalham, estabelecendo vínculos únicos de confiança com a população. Atualmente, o Brasil conta com 281.024 ACS distribuídos em 53.826 equipes de saúde da família, cada uma acompanhando até 750 moradores, através de visitas domiciliares e atividades educativas.

Foto 1: Fonte: Agente comunitária de saúde e enfermeira caminham na Rocinha, no Rio, durante a pandemia de covid-19. Fonte: Getty Images/via BBC Brasil / Foto 2: Fonte: Nahima Begum é uma agente comunitária de saúde em Pimlico, Londres. Fonte: https://www.bbc.co.uk/news/health-65530272

A conexão entre o SUS brasileiro e o NHS britânico começou de forma quase acidental. O médico sanitarista Matthew Harris, pesquisador do Imperial College de Londres, trabalhou durante quatro anos em uma unidade de saúde da família em Camaragibe, Pernambuco. Lá, descobriu a importância fundamental dos ACS para o trabalho médico na comunidade.

"Descobri que eles eram realmente essenciais para o meu trabalho como médico de família, tornavam o meu trabalho muito mais fácil, melhor, mais eficiente e eficaz, porque podiam me dizer o que está acontecendo de fato na comunidade", relata Harris.

Ao retornar ao Reino Unido, Harris enfrentou anos de resistência antes de conseguir implementar um projeto-piloto. A pandemia de COVID-19 foi um ponto de virada, evidenciando as limitações do modelo reativo do NHS, que espera que os usuários busquem ativamente o sistema, diferentemente da abordagem proativa brasileira.

O projeto-piloto britânico começou em 2021 no bairro de Pimlico, em Londres, com apenas quatro agentes atendendo 20 famílias cada. Os resultados positivos levaram à expansão: atualmente, são 24 agentes trabalhando em turno completo e cinco em meio período apenas em Pimlico, com o projeto previsto para durar dois anos. A iniciativa se espalhou organicamente, com 25 projetos-piloto independentes surgindo em outras regiões como Oxford, Norfolk e Cornualha. Hoje, o Reino Unido conta com 150 agentes comunitários de saúde, um número que cresceu significativamente em poucos anos.

Os resultados no Brasil são notáveis: a estratégia foi vinculada a uma redução de 34% nas mortes por problemas cardíacos em áreas com implementação completa do programa. Segundo Bernardo Xavier, ACS de 32 anos que trocou a carreira jurídica pela saúde comunitária, "podemos resolver 75% dos problemas que chegam até nós; esta é a forma de esvaziar os hospitais para que possam fazer o que precisam fazer".

A parceria se formalizou através da cooperação entre o governo britânico e o ResiliSUS da Fiocruz. O ministro da Saúde britânico, Wes Streeting, convidou especialistas brasileiros para informar o plano decenal do NHS, que será publicado em junho com maior foco na prevenção e deslocamento do atendimento para as comunidades.

Desafios e Perspectivas da Cooperação

Apesar dos resultados promissores, a adaptação do modelo brasileiro ao contexto britânico enfrenta desafios significativos. A médica Connie Junghans-Minton, que supervisiona o projeto-piloto em Londres, observa que "o NHS é um sistema muito caro e que não é particularmente eficaz. As pessoas chegam tarde, com doenças em estado avançado".

O principal questionamento gira em torno das diferenças culturais entre os dois países. Enquanto no Brasil os ACS muitas vezes se beneficiam de uma cultura comunitária mais forte - onde vizinhos se conhecem e confiam uns nos outros - a sociedade britânica moderna é caracterizada por maior individualismo e privacidade. A receptividade a visitas domiciliares não solicitadas pode ser significativamente diferente entre uma comunidade do Rio de Janeiro e um bairro de Londres.

Fonte: Em Londres, o ACS Bernardo Xavier trocou experiência com funcionários do NHS - Foto: Ascom SMS-Rio/Divulgação

No Brasil, os próprios ACS enfrentam desafios únicos que demonstram a resiliência do modelo. Desde a violência urbana nas grandes cidades até as vastas distâncias da Amazônia, esses profissionais continuam seu trabalho essencial. Bernardo Xavier, que atua no Rio de Janeiro, exemplifica: "Atrapalha as nossas visitas, precisamos interromper as visitas quando tem operação policial no território. É o nosso maior desafio".

Esta cooperação entre Brasil e Reino Unido representa um importante marco na transferência de conhecimento Sul-Norte na área da saúde. Alessandro Jatobá, coordenador do ResiliSUS, explica que os ACS são "a expressão de como o SUS consegue ser um serviço resiliente, garantindo as funções essenciais da saúde pública mesmo diante das adversidades".

Esta resiliência torna-se ainda mais notável quando consideramos os recorrentes cortes orçamentários que o SUS tem sofrido nos últimos anos. Como por exemplo, a Emenda Constitucional 95 (EC 95), que estabeleceu em 2016 o teto de gastos públicos, fez com que o SUS opere com recursos cada vez mais limitados e tenha que lidar com uma população em transição epidemiológica, que demanda cada vez mais investimento em infraestrutura para os diferentes níveis de atenção à saúde. Mesmo assim, continua mantendo sua função essencial de oferecer acesso universal e integral à saúde.

O interesse dos pesquisadores ingleses demonstra que sistemas de saúde podem aprender uns com os outros, independentemente do nível de desenvolvimento econômico. O SUS, frequentemente criticado internamente, emerge como fonte de inspiração internacional, validando a afirmação de Jatobá: "O SUS é o maior sistema de saúde do mundo. Quem diz que o SUS não funciona, está mal informado ou mal intencionado". Para o governo britânico, a adoção de elementos do modelo brasileiro integra uma estratégia mais ampla de reforma do NHS. Como destaca Streeting, "se acertarmos, o prêmio será todos nós vivendo não apenas vidas mais longas, mas vidas mais saudáveis e felizes". Esta cooperação pode abrir precedentes para futuras trocas de experiências, mostrando que inovações em saúde pública podem surgir dos contextos mais diversos e inspirar transformações globais.

Foto: NHS homenageado durante a cerimônia de abertura das Olimpíadas de Londres 2012, símbolo de prestígio britânico [fotos: BBC Sports / AFP/Getty Images]

O reconhecimento internacional do SUS como fonte de inspiração contrasta com o cenário doméstico, onde o sistema frequentemente enfrenta críticas e questionamentos. O "amor" que os britânicos nutrem pelo NHS, mesmo reconhecendo suas limitações e custos elevados, poderia servir de inspiração para aqueles que criticam e pedem o fim do SUS no Brasil. É fundamental reconhecer que, embora o SUS precisa de melhorias e maior investimento, trata-se de um sistema notavelmente bem-sucedido, considerando a complexidade territorial, populacional e socioeconômica do Brasil. Como esta cooperação demonstra, o SUS possui elementos valiosos que podem contribuir para a melhoria de sistemas de saúde ao redor do mundo.

Sobre os autores:
Flavio Pinheiro Martins é Doutorando pela University College London e pesquisador associado do Laboratório de Patologia Ambiental e Experimental do HCFMUSP

Wasim Aluísio Prates Syed é farmacêutico pela FCFRP-USP, doutorando em biotecnologia pelo ICB-USP, divulgador científico pela União Pró-Vacina, e pesquisador visitante no Cincinnati Children's Hospital Medical Center.

Referências (APA)

AFP/Getty Images. (2012, July 28). Dancers dressed as nurses in the NHS and Great Ormond Street Hospital tribute scene during London 2012 Olympic Opening Ceremony [Photograph]. Daily Mail. https://www.dailymail.co.uk/news/article-2179486/London-2012-Olympics-Some-Americans-left-baffled-tribute-NHS-Mary-Poppins-Opening-Ceremony.html

Souza, A. de. (2025, 19 de maio). Reino Unido quer replicar serviço oferecido pelo SUS. Deutsche Welle. https://p.dw.com/p/4uaeG

BBC Brasil. (2025, 8 de abril). SUS pode ser inspiração para salvar saúde do Reino Unido, diz jornal inglês. BBC News Brasil.

Donnelly, L., & Marquis, C. (2025, 7 de abril). The NHS is close to collapse – could a radical scheme from Brazil's favelas save it? The Telegraph.

Donnelly, L., & Marquis, C. (2025, 8 de abril). SUS could inspire UK healthcare reform, says British newspaper [Tradução]. The Telegraph.

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