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31/03/2021

A lente do CRID, por Simone Potje

Heparina: novas perspectivas terapêuticas para a COVID-19, por Simone R. Potje

O SARS-CoV-2 causa resposta imune exacerbada no paciente, provocando uma tempestade de citocinas inflamatórias e também gerando estresse oxidativo no organismo. Desta maneira, nosso laboratório questionou se tais respostas poderiam levar a algum dano em células vasculares, especificamente nas células endoteliais que estão em contato direto com o sangue, onde estão circulando as citocinas e também as espécies reativas de oxigênio/nitrogênio. Então nosso estudo, desenvolvido no laboratório de farmacologia cardiovascular da FMRP-USP, procurou compreender quais alterações estariam ocorrendo nas células endoteliais expostas ao plasma de pacientes com COVID-19. Se compreendermos como a tempestade de citocinas na COVID-19 afeta a função das células endoteliais, é possível propor uma alternativa terapêutica. 
 

Flavio: Bom dia Simone, como vai? Obrigado pela sua disponibilidade em participar do nosso quadro. Antes de mais nada, queria pedir para você se apresentar: pode resumir sua trajetória acadêmica, sua entrada/passagem pelo CRID e onde está agora.

Simone: Olá Flávio, primeiramente quero agradecer o convite e a oportunidade de poder divulgar uma parte da pesquisa desenvolvida no laboratório de Farmacologia Cardiovascular (FMRP-USP) sob supervisão da Prof Rita C Tostes. 

Sobre minha trajetória, sou bióloga formada pela Universidade Paulista (2009), possuo Mestrado (2012) e Doutorado (2016) em Ciências Fisiológicas pela Faculdade de Odontologia de Araçatuba – UNESP. Tive a oportunidade de realizar doutorado sanduíche (2015) na Universidade de Illinois em Chicago – UIC (Estados Unidos), assim como realizei estágios de pós-doutorado também na UIC (2018) e na Universidade do Arizona (2019, Estados Unidos). Atualmente faço pós-doutorado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP, onde tive a oportunidade de fazer parte e trabalhar com o CRID.  

Eu venho trabalhando com vasos sanguíneos e células vasculares desde 2010, procurando compreender como doenças, como a hipertensão arterial, afetam a função vascular. Recentemente o foco do meu trabalho tem sido o glicocálix, uma camada de proteoglicanos que fica sobre as células vasculares, mais especificamente sobre as células endoteliais. O termo glicocálix deriva do grego glykys, açúcar, e do latim calyx, casca. Esta camada de proteglicanos, ou açúcares ligados a proteínas, possui papel fundamental na proteção vascular. O glicocálix protege as células endoteliais contra danos físicos e químicos, modula a produção de óxido nítrico, além de reconhecer e controlar a adesão de células do sistema imunológico. A perda ou destruição do glicocálix é observada em diversas doenças, como a hipertensão arterial, e contribui para as complicações vasculares observadas nestas doenças.   

Flavio: Como é seu dia-a-dia de pesquisadora Simone? Se tivesse que elencar a coisa que você mais gosta sobre o que você faz, e a maior dificuldade que você já enfrentou/enfrenta?

Simone: Os dias na pesquisa variam muito, por exemplo, há dias e semanas com uma sequência absurda de experimentos, onde chego a trabalhar até 14h/dia. Mas também há dias e semanas que são mais tranquilos, onde faço análise estatística dos dados obtidos, procuro estudar por meios de livros didáticos, leio artigos científicos e busco sempre acompanhar as pesquisas mais recentes na área de fisiologia e farmacologia cardiovascular. Ainda, há dias de debates e discussões em grupos, dias em que ensinamos algum método ao colega de laboratório e dias de eventos científicos que são extremamente gratificantes.

O que mais eu gosto na pesquisa científica é que não existe monotonia e sempre há uma questão a ser respondida ou uma nova descoberta. Por outro lado, a maior dificuldade que o pesquisador enfrenta atualmente no Brasil é o negacionismo científico presente em grande parte da população brasileira. Ainda, os sucessivos cortes das verbas destinadas à pesquisa científica que vem ocorrendo por parte do governo brasileiro, acabam dificultando, desestimulando e deprimindo qualquer pesquisador. Desta maneira, grande parte dos pesquisadores atuantes tem a saúde mental afetada.   

Flavio: Simone, você consegue me explicar um pouco o seu objetivo de pesquisa? E como isso se alinha ao escopo do CRID?

Simone: Baseados em dados da literatura, nós sabíamos que ocorre aumento de citocinas e espécies reativas de oxigênio (ROS) no plasma dos pacientes com COVID-19. O aumento na quantidade de citocinas atrai muitas células inflamatórias que, ao mesmo tempo que tentam combater o SARS-CoV-2, também podem causar danos aos tecidos e células. Somente relembrando que citocinas são proteínas que regulam a resposta imunológica. A tempestade de citocinas que ocorre na COVID-19 é uma resposta imunológica excessiva, que pode causar danos ao corpo humano. Então nosso primeiro objetivo foi confirmar se as citocinas e ROS estavam comprometendo o glicocálix. Após confirmar que havia indícios de perturbação do glicocálix em pacientes com COVID-19, ou seja, após verificarmos que no sangue de pacientes com COVID-19 havia maiores níveis de componentes do glicocálix, nosso segundo objetivo foi verificar se o plasma desses pacientes seria capaz de alterar o glicocálix de células endoteliais saudáveis. Desta maneira, utilizamos células endoteliais de humanos imortalizadas, que foram tratadas com plasma de pacientes positivos para SARS-CoV-2 e também com plasma de indivíduos saudáveis. Observamos nestes experimentos in vitro que o plasma de pacientes com COVID-19 promove a degradação do glicocálix. Por fim, o último objetivo foi verificar se a heparina era capaz de prevenir essa perturbação do glicocálix in vitro.  

Flavio: Você consegue me detalhar um pouco mais os pontos de contato da sua pesquisa com a COVID-19?

Simone: Pacientes graves com COVID-19 apresentam eventos trombóticos e alterações da cascata de coagulação. Ainda, tem sido relatado que pacientes com a forma moderada de COVID-19 apresentam tromboses e embolia pulmonar, algumas semanas ou meses após a saída do hospital. Essas consequências estão diretamente associadas a degradação do glicocálix, pois o glicocálix atua como protetor vascular, previne adesão de leucócitos e eventos trombóticos, e atua como estrutura onde fatores anticoagulantes se ligam, assim o glicocálix tem papel de prevenir a coagulação. Desta maneira, compreender os mecanismos que contribuem para degradação do glicocálix na COVID-19 e também propor medidas terapêuticas para evitar a perturbação do glicocálix é fundamental para evitar a disfunção endotelial, bem como distúrbios coagulantes e eventos trombóticos observados em pacientes críticos e graves com COVID-19. 

Flavio: Simone, explica um pouco melhor para mim, o que é a função endotelial. E glicocálix? O que é?

Simone: O endotélio é a camada mais interna dos vasos sanguíneos, estando em contato direto com o sangue. Como o endotélio libera fatores vasoativos, ou seja, fatores que modulam o diâmetro do vaso, a função endotelial garante a homeostasia vascular, participando da regulação de sinais intracelulares e controlando a permeabilidade vascular. O glicocálix é uma camada de proteoglicanos que fica sobre o endotélio, tem como função prevenir eventos trombóticos, além de controlar a adesão de leucócitos no endotélio, participar da defesa antioxidante e realizar a mecanotransdução, que é a tradução de forças biomecânicas em sinais bioquímicos nas células endoteliais. 

Flavio: A heparina é um dos medicamentos mais conhecidos digamos, do público em geral, uma droga bem conhecida né? Tem sido recorrente o estudo de seu uso para o tratamento de efeitos inflamatórios em outras infecções virais, ou seu uso com a COVID-19 é algo muito inovador?

Simone: A heparina é um anticoagulante usado mundialmente. A heparina é usada em diversas infecções virais com o objetivo de prevenir a formação de coágulos e eventos trombóticos. A OMS (World Health Organization) preconizou em maio de 2020 o uso clínico da heparina como tratamento profilático para pacientes moderados e graves de COVID-19. Nós já sabíamos que a heparina inibe a atividade da heparanase, enzima responsável pela quebra de componentes do glicocálix. O inovador em nosso estudo é que demonstramos in vitro que a heparina evitou a perturbação do glicocálix induzida pelo plasma de pacientes com COVID-19. Desta maneira, mais estudos são necessários para decidir a melhor dose dependendo de cada caso, com a finalidade de prevenir quadros de desordem de coagulação e eventos trombóticos nos pacientes com COVID-19.  

Flavio: Acho que já ficou um pouco claro às implicações que esse estudo pode ter, mas se puder comentar um pouco sobre isso Simone.

Simone: Nosso estudo serve de base para outros estudos e ensaios clínicos com anticoagulantes e também com inibidores da heparanase, buscando um tratamento eficiente e adequado para as diferentes manifestações da COVID-19. É importante que o leitor entenda que não se deve fazer uso de heparina sem prescrição médica, uma vez que o uso indevido pode ocasionar hemorragias, por ser um anticoagulante potente. 

Flavio: Parabéns mais uma vez Simone. Para saber mais sobre sua pesquisa, ou entrar em contato contigo, como a gente pode fazer? 

Simone: Muito obrigada pela excelente condução dessa conversa e pela oportunidade de poder divulgar nossa pesquisa. Para saber mais sobre a pesquisa, pode entrar em contato direto comigo através do e-mail simonepotje@usp.br, também mais informações podem ser obtidas acessando o Twitter do laboratório (@Tosteslab). 

Outras formas de contato: 

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Laboratório de Farmacologia Cardiovascular (Coord. Profª Drª Rita C. Tostes)

Entrevistada: Simone Regina Potje  I   Entrevista realizada por: Flavio Pinheiro Martins, CRID - Difusão e Ensino   I  Revisão: Profª Drª Rita C. Tostes, CRID - FMRP

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