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02/06/2025

Ralph Steinman: da descoberta do intestino como órgão imunológico à aplicação personalizada das células dendríticas

A descoberta das células dendríticas e a compreensão do intestino como órgão imune mudaram para sempre o campo da imunologia. Por muito tempo, o intestino foi visto exclusivamente como um órgão digestivo. No entanto, essa perspectiva começou a mudar a partir dos anos 1970, quando o imunologista canadense Ralph Steinman identificou um novo tipo celular: as células dendríticas, fundamentais para a ativação do sistema imune adaptativo. Essa descoberta abriu caminho para uma nova compreensão sobre a interface entre imunidade e mucosas, especialmente no trato gastrointestinal.

Hoje sabemos que o intestino é um dos principais órgãos imunológicos do corpo humano, abrigando cerca de 70% das células imunes e uma vasta rede de tecidos linfóides associados, conhecida como GALT (Gut-Associated Lymphoid Tissue). Nesse ambiente, células dendríticas, linfócitos, macrófagos e outras células imunes estão em constante contato com antígenos alimentares, microbiota e potenciais patógenos. O desafio é imenso: discriminar o que deve ser eliminado e o que deve ser tolerado, e falhas nesse processo podem levar a doenças autoimunes e inflamatórias intestinais.

A atuação das células dendríticas no intestino demonstrou o papel central das mucosas como portas de entrada e centros reguladores da resposta imune. Elas captam fragmentos antigênicos, migram para os linfonodos mesentéricos e apresentam esses sinais às células T, regulando respostas inflamatórias ou tolerogênicas. Esse mecanismo é essencial para que o organismo conviva pacificamente com bilhões de microorganismos, a chamada microbiota intestinal e, ao mesmo tempo, esteja pronto para responder a infecções.

Mais do que um avanço científico, essa mudança de paradigma reforçou a importância do estudo do sistema imune em ambientes naturais de exposição. Ao olhar para o intestino como um nicho imunológico especializado, Steinman e seus colegas fundamentaram o caminho para novas abordagens em vacinas orais, terapias contra doenças inflamatórias crônicas, imunonutrição e microbiota.

Além do impacto teórico, essa descoberta teve implicações práticas profundas para a medicina moderna. A compreensão do intestino como órgão imunológico contribuiu para o desenvolvimento de estratégias terapêuticas mais eficazes contra doenças inflamatórias intestinais, alergias alimentares, síndromes autoimunes e até distúrbios metabólicos. Também impulsionou pesquisas em vacinas de mucosa, modulação da microbiota e imunoterapia oral, com aplicações que vão da pediatria à oncologia. O intestino, portanto, tornou-se não apenas alvo de investigação científica, mas também um território estratégico para intervenções clínicas inovadoras.

Mas talvez o capítulo mais simbólico da história de Steinman tenha sido sua própria experiência como paciente. Em 2007, ele foi diagnosticado com um dos tipos mais agressivos de câncer: o adenocarcinoma pancreático. A expectativa de vida era de poucos meses. No entanto, Steinman decidiu enfrentar a doença com aquilo que conhecia melhor: a ciência. Utilizou sua própria descoberta como aliada no tratamento, desenvolvendo, com apoio de colegas, uma abordagem experimental baseada em vacinas terapêuticas personalizadas. Essas vacinas foram produzidas a partir de suas próprias células dendríticas, programadas para reconhecer e conter o tumor.

O resultado foi impressionante: Steinman viveu quatro anos além da média esperada, acompanhando sua família, seus alunos e sua pesquisa até os últimos dias. Em outubro de 2011, foi anunciado como vencedor do Prêmio Nobel de Medicina. O comitê, no entanto, não sabia que ele havia falecido três dias antes. Em um gesto inédito, a Fundação Nobel manteve a premiação, tornando-o o primeiro laureado reconhecido postumamente desde que a regra de proibição foi instituída.

A trajetória de Ralph Steinman extrapola sua contribuição científica: ela evidencia como a pesquisa translacional pode avançar do conhecimento básico para aplicações clínicas concretas. Sua experiência como paciente e cientista reforça a importância da ciência orientada para a solução de problemas reais, conectando a bancada do laboratório à prática médica com seriedade e significado.

 

Referências:

Steinman, R. M., & Cohn, Z. A. (1973). Identification of a novel cell type in peripheral lymphoid organs of mice. J Exp Med, 137(5), 1142–1162.

Mowat, A. M., & Agace, W. W. (2014). Regional specialization within the intestinal immune system. Nat Rev Immunol, 14(10), 667–685.

Belkaid, Y., & Hand, T. W. (2014). Role of the microbiota in immunity and inflammation. Cell, 157(1), 121–141.

Honda, K., & Littman, D. R. (2016). The microbiota in adaptive immune homeostasis and disease. Nature, 535, 75–84.

Texto publicado por Dra. Vanessa Carregaro - Imunologista, Professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP (FMRP-USP). Atua no Ensino e Pesquisa, na área de Imunonologia com foco em doenças inflamatórias e infecciosas. Coordena ações de extensão voltadas à divulgação científica e à promoção da equidade no acesso ao conhecimento.

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