NOTÍCIAS

MENU NOTÍCIAS

04/11/2021

SARS-CoV-2 aumenta o gasto energético de células do cérebro para se replicar

Karina Toledo | Agencia FAPESP - Alteracoes de memoria recente e confusao mental estao entre as sequelas neurologicas mais comuns da COVID-19. E experimentos com hamsters conduzidos na Universidade de Sao Paulo (USP) podem ajudar a entender como esses sintomas surgem e talvez ate indicar um caminho para combate-los.

A pesquisa foi conduzida com os animais vivos e tambem com astrocitos isolados do sistema nervoso central dos roedores e cultivados in vitro. Os resultados sugerem que a infeccao pelo SARS-CoV-2 acelera o metabolismo dessas celulas nervosas e aumenta o consumo de moleculas usadas na geracao de energia, como a glicose e o aminoacido glutamina.

O grande problema e que a glutamina tambem e importante para a sintese de glutamato - o principal neurotransmissor envolvido na comunicacao entre neuronios -, que aparentemente fica prejudicada. Nos animais, a presenca do virus e alteracoes no nivel de proteinas relacionadas com o metabolismo energetico foram observadas no hipocampo (regiao do cerebro fundamental para a consolidacao da memoria e para o aprendizado) e no cortex (tambem importante para a memoria, a cognicao e a linguagem).

"Ao que tudo indica, o SARS-CoV-2 superativa o metabolismo dos astrocitos de modo a obter mais energia para replicar seu material genetico e produzir novas particulas virais. Tanto que, quando usamos uma droga para bloquear a glutaminolise [a producao de energia a partir de glutamina], a replicacao viral nas celulas em cultura foi reduzida em cerca de um terco", conta Jean Pierre Peron, professor do Instituto de Ciencias Biomedicas (ICB-USP), pesquisador da Plataforma Cientifica Pasteur-USP (SPPU) e coordenador da investigacao.

O projeto contou com a colaboracao de grupos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Centro de Pesquisa em Doencas Inflamatorias (CRID) da Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto (FMRP-USP). Recebeu apoio da FAPESP por meio de sete projetos (20/06145-4, 20/07251-2, 17/27131-9, 15/15626-8, 20/04579-7, 20/04746-0 e 15/25364-0). Resultados preliminares foram divulgados no repositorio bioRxiv, em artigo ainda sem revisao por pares.

Evidencias anteriores

Os astrocitos sao as celulas mais abundantes do sistema nervoso central e entre as suas diversas funcoes esta a de dar suporte ao funcionamento dos neuronios fornecendo nutrientes como, por exemplo, glicose e glutamina. Eles tambem regulam a concentracao de neurotransmissores e de outras substancias com potencial de interferir no funcionamento neuronal, como o potassio. Alem disso, integram a barreira hematoencefalica, que protege o cerebro contra patogenos e toxinas.

Ainda em 2020, o grupo coordenado por Thiago Cunha na FMRP-USP analisou o tecido cerebral de pessoas que morreram de COVID-19 e confirmou a presenca do SARS-CoV-2 no interior dos astrocitos.

Ja na Unicamp, a equipe de Daniel Martins-de-Souza demonstrou que o novo coronavirus e capaz de infectar e de se replicar em astrocitos humanos derivados de celulas-tronco pluripotentes induzidas (IPS, na sigla em ingles), metodo que consiste em reprogramar celulas adultas da pele ou de outros tecidos de facil acesso (leia mais em: agencia.fapesp.br/34364).

Testes in vitro feitos na epoca indicaram que a infeccao induzia alteracoes em vias bioquimicas relacionadas ao metabolismo energetico. Esse achado foi reforcado agora com os experimentos feitos na SPPU.

"Todo esse conjunto de dados sugere que o comprometimento do sistema nervoso central em infectados pelo SARS-CoV-2 passa pelos astrocitos e o metabolismo de energia tem um papel importante nesse processo", diz Martins-de-Souza a Agencia FAPESP.

Resultados recentes

Apos infectar astrocitos de hamsters com o SARS-CoV-2, os pesquisadores observaram que as celulas passaram a produzir moleculas inflamatorias (citocinas) e notaram uma mudanca na expressao de proteinas relacionadas com o metabolismo de carbono (glicose). Ao analisar os metabolitos presentes na cultura de celulas, perceberam que algumas substancias estavam bem reduzidas em comparacao ao controle (astrocitos nao infectados).

"Vimos que havia uma menor quantidade de glutamina e de outras moleculas envolvidas na geracao de energia e na sintese de proteinas, como aspartato, piruvato e alfa-cetoglutarato. Esse resultado sugere que a celula esta muito ativada metabolicamente. Acreditamos que isso ocorre porque o virus demanda mais energia para se replicar", explica Peron.

Em outro experimento, as culturas de astrocitos foram colocadas em um aparelho capaz de medir o consumo de glicose e de oxigenio - tecnica conhecida como respirometria. A analise confirmou o metabolismo mais acelerado das celulas infectadas.

"Como se trata de sistema nervoso central, nos chamou a atencao o fato de a glutamina estar mais baixa, pois ela e materia-prima para a sintese de glutamato e cerca de 90% das sinapses sao mediadas por esse neurotransmissor. Aparentemente, portanto, a infeccao causa um desbalanco de energia que, por sua vez, leva a um desbalanco nos niveis de glutamato. E possivel que isso altere o funcionamento dos neuronios, mas e algo que ainda precisa ser testado", afirma o professor do ICB-USP.

Quando os astrocitos infectados foram tratados com uma droga capaz de bloquear a glutaminolise, a replicacao viral foi reduzida - houve queda tanto na concentracao de RNA viral como na quantidade de particulas de SARS-CoV-2 presentes no meio de cultivo.

Nos testes in vivo, os hamsters foram infectados por via intranasal e a presenca do virus no sistema nervoso central foi monitorada ate 14 dias depois. Foi possivel observar que, assim como ocorreu in vitro, a infeccao induziu a producao de citocinas inflamatorias e tambem causou alteracoes no perfil de proteinas cerebral.

"Observamos a presenca de particulas virais no hipocampo e no cortex - duas regioes ricas em glutamato. Vimos tambem alteracoes em varias proteinas relacionadas com o metabolismo de carbono e de glutamina. Isso nos faz pensar que algo similar esteja ocorrendo em humanos e talvez essa seja a origem de sintomas como perda de memoria, prejuizos cognitivos, dificuldade de concentracao e confusao mental", opina Peron.

Martins-de-Souza comenta que, nos testes com astrocitos humanos, a reducao de glutamina ja havia sido observada. "Esses novos achados confirmam que a glutaminolise e um processo importante para replicacao viral. Estamos, portanto, falando de um alvo no cerebro que pode ser explorado na busca de terapias", afirma.

Para Peron, algo mais factivel de ser testado no curto prazo e o tratamento das sequelas neurologicas da COVID-19 com farmacos capazes de modular as sinapses mediadas por glutamato. Esse tipo de medicamento ja e usado em pacientes com Alzheimer.

O artigo SARS-CoV-2 Infection Impacts Carbon Metabolism and Depends on Glutamine for Replication in Syrian Hamster Astrocytes pode ser lido em: www.biorxiv.org/content/10.1101/2021.10.23.465567v1.


Este texto foi originalmente publicado por Agencia FAPESP de acordo com a licenca Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Assine nossa newsletter