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30/06/2025

Síndrome de Tourette: Interações Neuroimunológicas

A síndrome de Tourette é um transtorno neurológico do desenvolvimento, caracterizado pela presença de tiques motores e vocais, que surgem na infância e persistem por mais de um ano. Esses tiques são movimentos ou sons involuntários, rápidos e repetitivos, que ocorrem de forma súbita e são, muitas vezes, difíceis de controlar (American Psychiatric Association, 2013; Martino et al., 2020).

Os tiques podem ser simples, como piscar os olhos, movimentar o rosto ou os ombros, ou mais complexos, envolvendo sequências de movimentos coordenados. Também podem se manifestar na fala, por meio de sons, pigarros, fungadas ou palavras. A emissão involuntária de palavrões, conhecida como coprolalia, é muito menos frequente do que se costuma imaginar, estando presente em menos de 10% dos casos (Robertson, 2015). Muitas pessoas conseguem suprimir os tiques por certo tempo, mas isso gera uma sensação crescente de desconforto, chamada de sensação premonitória, que só se alivia quando o tique é executado (Ganos et al., 2012).

No cérebro dos indivíduos com Tourette, observa-se uma disfunção nos circuitos responsáveis pelo controle motor e comportamental, especialmente nas conexões entre o córtex pré-frontal, os gânglios da base e o tálamo. Esses circuitos são fundamentais para regular movimentos automáticos, inibir impulsos e controlar comportamentos (Singer et al., 2018). Nessas regiões, há um desequilíbrio na sinalização dos neurotransmissores, especialmente da dopamina, que apresenta atividade excessiva. Esse aumento prejudica os mecanismos inibitórios dos circuitos corticoestriatais, facilitando a ocorrência de movimentos e sons involuntários (Robertson, 2015; Singer et al., 2018).

Embora a síndrome de Tourette seja classicamente considerada um transtorno neuropsiquiátrico do desenvolvimento, evidências indicam que, em alguns casos, mecanismos autoimunes podem estar envolvidos tanto no surgimento quanto na exacerbação dos sintomas (Martino et al., 2009; Singer et al., 2018). A principal evidência dessa associação vem da descrição da síndrome conhecida como PANDAS (Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcal Infections). Nesses casos, observa-se que crianças, após uma infecção por estreptococos do grupo A, passam a apresentar de forma súbita tiques motores e vocais, além de sintomas obsessivo-compulsivos e alterações emocionais marcantes (Swedo et al., 1998; Frankovich et al., 2015).

O mecanismo central desse processo é um exemplo clássico de mimetismo molecular. As proteínas do estreptococo, especialmente a proteína M, compartilham similaridades estruturais com componentes dos neurônios localizados nos gânglios da base, regiões críticas para o controle motor e comportamental. Como consequência, o sistema imune, ao responder à infecção, produz autoanticorpos que reconhecem, de maneira cruzada, estruturas neuronais e passam a atacá-las (Cunningham, 2012; Cox et al., 2013).

Esses autoanticorpos se ligam a proteínas neuronais como tubulina, lisogangliosídeo GM1 e enolase, interferindo diretamente na regulação dos circuitos neuronais. Esse processo gera um desequilíbrio na sinalização dopaminérgica e compromete os mecanismos inibidores do controle motor, o que clinicamente se manifesta como tiques e comportamentos compulsivos (Cox et al., 2013; Cunningham, 2012).

Além da ação direta dos autoanticorpos, há evidências de um ambiente neuroinflamatório no sistema nervoso central. A ativação da microglia, juntamente com o aumento de citocinas pró-inflamatórias como IL-6, TNF e IL-17, contribui para esse quadro de disfunção neuroimune, perpetuando a inflamação e a desregulação dos circuitos neurais (Frick et al., 2013; Martino et al., 2009).

Embora a participação autoimune esteja bem estabelecida no contexto do PANDAS, estudos mais recentes sugerem que um componente imunológico também pode estar presente, de forma mais sutil, na síndrome de Tourette clássica, mesmo na ausência de uma infecção desencadeante evidente. Evidências apontam para a presença de alterações imunológicas de base, incluindo aumento de citocinas inflamatórias, disfunções na barreira hematoencefálica e desequilíbrios na resposta imune inata e adaptativa (Martino et al., 2015; Dale et al., 2017).

Esses achados não apenas ampliam a compreensão sobre a fisiopatologia da síndrome de Tourette, como também têm implicações terapêuticas relevantes. Em casos de provável origem autoimune, especialmente no contexto do PANDAS, além do manejo convencional com terapias comportamentais e farmacológicas, podem ser considerados imunomoduladores, como corticosteroides, imunoglobulina intravenosa e até plasmaférese, nos quadros mais graves e refratários (Frankovich et al., 2015; Murphy et al., 2017).

Ainda que essas intervenções estejam restritas a situações específicas e não façam parte do protocolo padrão para a Tourette clássica, elas representam uma fronteira promissora, que conecta neurologia, psiquiatria e imunologia na busca por abordagens terapêuticas mais eficazes e personalizadas.

 

 

 

Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5. ed. Arlington: American Psychiatric Publishing, 2013.

 

COX, C. J. et al. Brain human monoclonal antibodies from Sydenham chorea recognize pathologic antigen in streptococcus and human dopamine receptors. The Journal of Clinical Investigation, v. 123, n. 9, p. 3674-3686, 2013. DOI: https://doi.org/10.1172/JCI69000.

 

CUNNINGHAM, M. W. Molecular mimicry, autoimmunity, and infection: the cross-reactive antigens of group A streptococci and their sequelae. Microbiology Spectrum, v. 1, n. 1, 2012. DOI: https://doi.org/10.1128/microbiolspec.AID-0021-2012.

 

DALE, R. C. et al. Tourette’s syndrome and other chronic tic disorders: an autoimmune hypothesis. The Lancet Neurology, v. 16, n. 11, p. 944-955, 2017. DOI: https://doi.org/10.1016/S1474-4422(17)30213-7.

 

FRANKOVICH, J. et al. Clinical management of pediatric acute-onset neuropsychiatric syndrome: part II—use of immunomodulatory therapies. Journal of Child and Adolescent Psychopharmacology, v. 25, n. 7, p. 593-603, 2015. DOI: https://doi.org/10.1089/cap.2015.0046.

 

FRICK, L. R. et al. Differential activation of microglia and astrocytes in a murine model of Tourette syndrome. Brain Research, v. 1519, p. 1-12, 2013. DOI: https://doi.org/10.1016/j.brainres.2013.04.002.

 

GANOS, C.; ROESSNER, V.; MÜNCHAU, A. The premonitory urge revisited: an updated review of neurobiological origins and clinical relevance in tic disorders. Frontiers in Psychiatry, v. 3, p. 16, 2012. DOI: https://doi.org/10.3389/fpsyt.2012.00016.

 

MARTINO, D. et al. Tourette syndrome. Nature Reviews Disease Primers, v. 6, n. 1, p. 1-21, 2020. DOI: https://doi.org/10.1038/s41572-020-0143-1.

 

MARTINO, D. et al. Immunopathogenic mechanisms in Tourette syndrome: a critical review. Movement Disorders, v. 24, n. 9, p. 1267-1279, 2009. DOI: https://doi.org/10.1002/mds.22506.

 

MARTINO, D.; GIOVANNONI, G.; LECKMAN, J. F. Autoimmune basal ganglia disorders: the interface between neuropsychiatry and neurology. Movement Disorders, v. 30, n. 2, p. 195-198, 2015. DOI: https://doi.org/10.1002/mds.26086.

 

MURPHY, T. K.; KURLAN, R.; LECKMAN, J. F. The immunobiology of Tourette’s disorder, pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcus, and related disorders: a way forward. Journal of Child and Adolescent Psychopharmacology, v. 27, n. 7, p. 566-573, 2017. DOI: https://doi.org/10.1089/cap.2017.0042.

 

ROBERTSON, M. M. A personal 35-year perspective on Gilles de la Tourette syndrome: assessment, investigations, and management. The Lancet Psychiatry, v. 2, n. 1, p. 88-104, 2015. DOI: https://doi.org/10.1016/S2215-0366(14)00132-1.

 

SINGER, H. S. et al. Neuroimmune mechanisms in Tourette syndrome: a critical review. Journal of Neuroimmune Pharmacology, v. 13, n. 3, p. 377-389, 2018. DOI: https://doi.org/10.1007/s11481-018-9788-0.

 

SWEDO, S. E. et al. Pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcal infections: clinical description of the first 50 cases. The American Journal of Psychiatry, v. 155, n. 2, p. 264-271, 1998. DOI: https://doi.org/10.1176/ajp.155.2.264.

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