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02/09/2021

Identificado novo tipo de célula que torna os sobreviventes da sepse mais propensos a infecções

Karina Toledo | Agencia FAPESP - A sepse e a principal causa de morte nas unidades de terapia intensiva (UTIs) brasileiras. Entre os pacientes que evoluem para a forma grave da doenca, 40% morrem. E os sobreviventes frequentemente apresentam sequelas cardiovasculares e neurologicas, alem de uma queda significativa na imunidade que perdura por anos apos a alta hospitalar.

"Estudos sugerem que os sobreviventes da sepse tem risco seis vezes maior de desenvolver infeccoes graves quando comparados a individuos que nunca tiveram a doenca. Eles ficam suscetiveis ate mesmo a patogenos oportunistas, que nao costumam causar problemas em pessoas saudaveis. Nos estamos comecando a entender por que isso acontece", diz a Agencia FAPESP Jose Carlos Farias Alves Filho, professor da Universidade de Sao Paulo (USP) e coordenador de um estudo sobre o tema que acaba de ser divulgado na revista Immunity.

Popularmente chamada de infeccao generalizada, a sepse e na verdade uma inflamacao sistemica comumente desencadeada por uma infeccao localizada que saiu do controle. Na tentativa de eliminar o agente patogenico - que pode ser uma bacteria, um fungo ou ate mesmo um virus, como o SARS-CoV-2 -, o sistema imune comeca a produzir substancias inflamatorias de forma excessiva que prejudicam o proprio organismo. Nos pacientes com a forma grave, ocorre lesao de orgaos vitais, queda na pressao arterial e - em ultima instancia - um quadro de falencia circulatoria conhecido como choque septico.

Para entender como isso resulta em imunossupressao, o grupo coordenado por Alves Filho fez uma serie de experimentos com camundongos e com celulas imunes isoladas do sangue de pacientes septicos. A investigacao foi conduzida pela pos-doutoranda Daniele Carvalho Bernardo Nascimento, bolsista da FAPESP. Os pesquisadores integram o Centro de Pesquisa em Doencas Inflamatorias (CRID) - um Centro de Pesquisa, Inovacao e Difusao (CEPID) sediado na Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto (FMRP-USP).

"De modo resumido, nossos resultados revelam que a sepse induz a proliferacao de uma subpopulacao de linfocitos B que expressa grandes quantidades de CD39 - uma enzima que quebra a molecula de ATP [adenosina trifosfato, o 'combustivel' quimico das celulas] e libera adenosina na circulacao. Esse aumento na concentracao circulante de adenosina, por sua vez, reduz a atividade dos macrofagos, que sao celulas de defesa responsaveis por fagocitar bacterias, fungos e outras potenciais ameacas ao organismo", conta Alves Filho.

Como explica o pesquisador, o aumento nos niveis de adenosina no periodo inicial da sepse ja era conhecido, bem como seu efeito imunossupressor. A adenosina se liga a um receptor presente na superficie do macrofago chamado A2aR, induzindo a producao de interleucina-10 (IL-10), uma molecula com acao anti-inflamatoria.

A novidade do estudo foi demonstrar que a adenosina tem um papel central no desenvolvimento da imunossupressao pos-sepse e revelar qual celula e a fonte dessa adenosina extra encontrada no sangue de animais e de pacientes septicos.

"Todas as celulas do sistema imune expressam CD39 em niveis variados. Mas observamos que tem uma subclasse de linfocitos B, denominada plasmoblasto, que produz grandes quantidades dessa enzima. Nos identificamos que esses plasmoblastos se proliferam muito apos a sepse e sofrem uma reprogramacao metabolica. Passam a consumir mais glicose e, consequentemente, a produzir mais ATP. Ao mesmo tempo, expressam grandes quantidades da enzima [CD39] que faz a hidrolise do ATP e libera adenosina. E como se os soldados se tornassem capazes de produzir a propria municao", compara o pesquisador.

Experimentos

Para induzir a sepse grave em camundongos, os cientistas recorreram a um modelo conhecido como ligadura e perfuracao cecal (CLP, na sigla em ingles), que consiste em fazer pequenos furos no intestino de modo a permitir o extravasamento de fezes e de bacterias para a cavidade peritoneal. O procedimento simula o que ocorre em pacientes com apendicite supurada. Os animais que sobreviveram a sepse foram acompanhados por 90 dias e, durante todo o periodo, se mostraram altamente suscetiveis a patogenos oportunistas. Quando expostos a bacteria Legionella pneumophila, nenhum sobreviveu. No caso do fungo Aspergillus fumigatus, somente 20% sobreviveram.

Para confirmar a importancia da adenosina no quadro de imunossupressao pos-sepse, foram feitos experimentos com farmacos capazes de inibir a enzima CD39 ou o receptor de adenosina A2aR. Entre os animais que receberam esse "tratamento" antes da exposicao a patogenos oportunistas, o percentual de sobreviventes aumentou para 60%.

Quando o mesmo experimento foi feito usando animais geneticamente modificados para nao expressar a enzima CD39 ou o receptor A2aR, a sobrevivencia chegou a 70%.

Ao analisar o sangue de pacientes septicos internados no Hospital de Clinicas da FMRP-USP, os pesquisadores notaram que, quanto mais grave era o quadro, mais altos eram os niveis de adenosina circulantes e maior tambem era a quantidade de plasmoblastos expressando CD39.

Diversos outros testes foram feitos com camundongos para elucidar o mecanismo imunossupressor passo a passo. Em um deles, animais sadios receberam uma infusao de plasmoblastos isolados de animais septicos e, como consequencia, tornaram-se mais suscetiveis aos patogenos oportunistas.

Experimento semelhante foi feito com celulas humanas. Macrofagos isolados de voluntarios sadios foram incubados com plasmoblastos de pacientes septicos e com uma bacteria oportunista. Devido a acao da adenosina, as celulas de defesa ficaram incapazes de matar o microrganismo.

Lacunas

Uma questao que permanece em aberto e por quais mecanismos a sepse provoca a proliferacao dos linfocitos B produtores de CD39. Outra tarefa futura e acompanhar pacientes que sobreviveram a sepse grave e avaliar se os niveis de adenosina circulantes permanecem elevados por longos periodos, como ocorre nos camundongos.

Em um trabalho anterior, divulgado na Nature Communications em 2017, o grupo liderado por Alves Filho havia mostrado que a sepse induz a proliferacao de outro tipo de celula imunossupressora conhecido como linfocito T regulador, ou Treg (leia mais em: agencia.fapesp.br/25041/).

"Nos ja haviamos demonstrado que a sepse gera a expansao de linfocitos T reguladores de uma maneira dependente de IL-10. No presente estudo, demonstramos que a adenosina produzida pelos plasmoblastos e um mediador que leva a producao de IL-10 por macrofagos em sobreviventes a sepse. Esses dois trabalhos, portanto, se conectam: o plasmoblasto induz a producao de IL-10 pelos macrofagos que, por sua vez, podem promover a expansao de linfocitos T reguladores, amplificando o estado imunossupressivo dos individuos", comenta Nascimento.

Segundo a pos-doutoranda, a identificacao desse novo mecanismo abre caminho para a busca de intervencoes capazes de reverter o quadro. "Acreditamos que, se conseguirmos inibir a expansao dos plasmoblastos, poderemos reduzir a imunossupressao e, consequentemente, aumentar a expectativa de vida dos individuos que sobrevivem a sepse."

O artigo Sepsis expands a CD39+ plasmablast population that promotes immunosuppression via adenosine-mediated inhibition of macrophage antimicrobial activity pode ser lido em: www.cell.com/immunity/fulltext/S1074-7613(21)00335-6?_returnURL=https%3A%2F%2Flinkinghub.elsevier.com%2Fretrieve%2Fpii%2FS1074761321003356%3Fshowall%3Dtrue.

 

Este texto foi originalmente publicado por Agencia FAPESP de acordo com a licenca Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

 

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